A Fundação Casa de Rui Barbosa abriu nesta quinta-feira (18) à consulta a carta escrita por Mário de Andrade em 7 de abril de 1928 ao amigo Manuel Bandeira, em que faz referências diretas à sua homossexualidade. O documento estava lacrado havia 35 anos nos arquivos da Fundação, e foi aberto depois de um pedido de ÉPOCA por meio da Lei de Acesso à Informação.
Na carta, Mário de Andrade fala sobre as pressões que sofria por causa de sua fama de homossexual, e não desmente os boatos a esse respeito. Em um dos trechos, afirma: “si agora toca nesse assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão) e si saio com alguém é porque esse alguém me convida, si toco no assunto é porque se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas amizades platônicas, só minhas.”
Até hoje, esta carta é a confissão mais clara sobre a homossexualidade do autor paulista, feita de próprio punho. Embora o assunto já fosse de conhecimento público, a pressão da família em negar o fato, e a postura da Casa de Rui Barbosa em relutar a abrir esta carta, produziram grande alarde em torno do documento.
A decisão da Controladoria Geral da União em determinar que a carta fosse aberta à consulta vai permitir um debate mais amplo sobre o alcance da Lei de Acesso à Informação. Para os pesquisadores de Mário de Andrade, esta vitória significa um passo adiante no estudo da vida e da obra do escritor, cuja morte completa agora 70 anos.
Leia abaixo o trecho da carta de abril de 1928:
(...) Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porque em toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialisão absolutamente desprezível duma verdade inicial. Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo pra minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu há de tê-lo bem catalogado e especificado, há de ter tudo normalizado em si, si é que posso me servir de “normalizar” neste caso. Tanto mais, Manu, que o ridículo dos socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e contradições em que caem. O caso de Maria não é típico? Me dão todos os vícios que por ignorância ou por interesse de intriga, são por eles considerados ridículos e no entanto assim que fiz duma realidade penosa a “Maria”, não teve nenhum que caçoasse falando que aquilo era idealização para desencaminhar os que me acreditavam nem sei o que, mas todos falaram que era fulana de tal.
Mas si agora toco nesse assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como eu tenho a minha vida mais regulada que máquina de pressão) e si saio com alguém é porque esse alguém me convida, si toco no assunto é porque se poderia tirar dele um argumento pra explicar minhas amizades platônicas, só minhas. Ah, Manu, disso só eu mesmo posso falar, e me deixe ao menos pra você, com quem, apesar das delicadezas da nossa amizade, sou duma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros num casos como este onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.
Eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequencia, faça deles o que quiser.”
Fonte: Época
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