sábado, 5 de setembro de 2015

Quando o mundo desiste do "marginal". Menos a professora


Carmela, a professora interpretada por Alina Rodriguez, no filme "Numa Escola de Havana"
O cenário é cortado por trilhos no filme “Numa Escola de Havana”, de Ernesto Daranas, que estreou por aqui na quinta-feira 3. Naquele cenário, transitar é assumir riscos, e eles se espalham entre prédios envelhecidos, ruas e calçadas diminutas, escadarias de madeira, pontes envelhecidas e casas pouco arejadas. Logo nas primeiras cenas, a alegoria parece gritar: nenhuma fronteira é bem delimitada quando todos os caminhos se espremem e se embrenham. A começar pela fronteira entre a infância, a adolescência, o mundo adulto e a velhice.

O protagonista, Chala, é um menino de 11 anos que assume a função de homem da casa ao percorrer o centro antigo da cidade em busca de dinheiro. A mãe, prostituta, é viciada em álcool e remédios. O pai é desconhecido, e o único adulto sóbrio que circula pela casa rejeita qualquer afeto pelo garoto. Pelo contrário, estabelece com ele uma relação comercial de gente grande. O garoto, que pode se seu filho, cuida dos cães e os ensina a brigar. O adulto faz as apostas nas rinhas ilegais de Havana.

Mas o garoto aliciado que embrutece ao ensinar os cães a matar e morrer é capaz também de criar pombos mensageiros e ensiná-los a voar. É capaz de responder com beijos as agressões da mãe. É capaz de esconder a fragilidade para encarar os adultos brutalizados como um deles.

As contradições inevitáveis em uma realidade também confusa tornam quase impossível dizer onde começam as responsabilidades pelo desamparo que atinge adultos e crianças naquela cidade. Para sobreviver, todos, de alguma forma, precisam correr riscos, violar regras e transgredir acordos – muitos deles draconianos, como rezar em sala de aula por um aluno à beira da morte.

No filme, há um fundo moral que perpassa todo o cenário de regras e proibições numa ordem tão autoritária quanto caótica. A regra básica para ampliar possibilidades é transgredir. Sobretudo quando as possibilidades estão fechadas e destinadas à eliminação.


O esforço das autoridades em categorizar sintomas retirados do contexto - o garoto problemático e agressivo deve ser afastado da escola, definem - é sempre uma violência de mão dupla. Para a polícia, a direção da escola, os vizinhos e a própria família, a agressividade ora ingênua ora gratuita dos jovens-adultos dentro da escola é um sintoma a ser isolado. É um problema do Estado. Um problema que, isolado, deixa de se manifestar. É quando crianças passam a ser tratadas como animais.

Para quem acompanhou com atenção o debate sobre a redução da maioridade penal no Brasil, assistir ao filme pode ser um exercício educativo. Melhor que definir fronteiras, expõe o diretor, é compreender seus contracampos. No filme, a única personagem capaz de entender essas contradições e apontar caminhos é uma professora prestes a se aposentar.

Rígida, calejada e maltratada pela direção e assistentes sociais, ela tem o respeito dos estudantes porque em algum momento ultrapassou a função estabelecida entre eles e se aprofundou. Essa relação, em tese pouco recomendada, não é construída num velho quadro negro, mas num pacto de confiança, selado com visitas às casas dos alunos, conversas no canto da escola, contato com os pais e - sobretudo - transgressões consentidas, como permitir que sua melhor aluna siga estudando mesmo sabendo que sua matricula é falsificada.

Os demais, justamente os que dizem cumprir seu papel, parecem incapazes de perceber que transitam entre o paternalismo e o abandono. Os gestores daquele sistema de ensino são os síndicos que olham o regulamento, aplicam as normas e dormem tranquilos - para usar uma metáfora desenvolvida por Christian Dunker para explicar nossas relações intramuros e nossa incapacidade de compreender o nó das próprias tragédias.

Enquanto o mundo pede para encarcerar as bestas-feras, a professora é a única que ainda as vê como crianças. É a única também que as leva a sério. Que não faz voz de criança para negociar nem grita quando quer enquadrar. Sabe que, fora daquela sala de aula, os adultos também tiveram de lidar cedo demais com as ruínas do mundo adulto e agora sobrevivem pisoteando fronteiras. Daquela escola em Havana, um dos pais está preso. Outro é vendedor ambulante ilegal. Outro é contraventor. 

Não se sabe em que momento aqueles pais deixaram as brincadeiras de criança e embruteceram. Provavelmente quando começaram a correr perigo na infância. Quando violar fronteiras passou a determinar uma sobrevivência.

Num mundo de acordos opacos entre legalidade e ilegalidade, missão e vocação, regras e punições, a professora da velha escola é a representação de uma última fronteira que pode e deve permanecer intocada: a que determina o momento em que jogamos a toalha e desistimos de nossas crianças. Como quando deixamos de tratá-la como uma. Numa Escola de Havana é a história de um princípio que agoniza.

Crônica de Matheus Pichonelli publicada na Carta Capital

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