domingo, 8 de janeiro de 2017

Em tempos sombrios, a verdade torna-se apenas um detalhe



Nada mais perturbador do que o sentimento de perda dos parâmetros: de verdade, de justiça, de bom senso, de autoridade, de tempo e direção. Não há mais regra, ou segurança, de que o voto e os direitos sejam garantidos.

É um desmonte dos direitos e da segurança que traziam. É como se todas as peças do sistema estivessem frouxas. Hannah Arendt lembra-nos que as crises republicanas (o abalo da tradição, da verdade e da autoridade) deixam uma lacuna desconcertante entre o passado e o futuro. É limbo histórico, descompasso do tempo.

Crises econômicas tornam-se também políticas e morais. O colapso é multidimensional e ocorre em múltiplos níveis e contextos.

Perdemos alguns modelos de projeção. Os países que possuíam uma agenda mais consolidada de direitos humanos dão um passo atrás. As declarações do futuro presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em tempos de parâmetros de justiça razoáveis, seriam criminosas.

Ele não apenas permanece impune, como é gratificado. Nessa mesma lógica, não surpreende se Jair Bolsonaro, que, criminosa e impunemente, fez apologia do estupro e da tortura, chegue ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2018. É o colapso do que achávamos conquistado.

Passamos por um processo de impeachment que deixou dúvidas sobre sua integridade ética. Para saciar a raiva de muitos em tempos confusos, a veracidade das provas não era uma questão. Aliás, em tempos de perda de parâmetros, a verdade é apenas um detalhe.

Corrupção, pedaladas e crise econômica misturavam-se em uma narrativa embrulhada pelo rancor e misoginia. Um adesivo de carros estampava a presidenta da República, de pernas abertas, a ser violada por uma nação de insatisfeitos. Perdeu-se qualquer senso de autoridade.

O Brasil volta a ser governado por homens velhos e brancos, que atuam por meio de um discurso retrógrado. A autoridade máxima da nação alega que a composição dos ministérios se dá pela capacidade intelectual dos seus homens.

Esse argumento continua a ser sustentado, apesar de seis ministros terem caído em seis meses por motivos de corrupção (quatro denunciados e dois denunciantes). É o tempo dos absurdos.

As investigações da Operação Lava Jato ignoraram regras éticas de investigação. Escutas ilegais são celebradas. Irrelevante discutir os meios para se chegar a um fim maior. Essa tem sido a justificativa de todos os regimes autoritários da história da humanidade.

Desse modo, nada mais protege o cidadão (nada que um morador pobre e negro da periferia não tenha sentido na pele). O desamparo nos leva a uma sociedade com tendências bárbaras que, cada vez mais, tolera diversas formas de linchamento. Uma população que clama pelo imediatismo dos fins, por mudança a qualquer custo, quando os meios estão desacreditados.

Não se chega a esse nível de barbárie à toa. Há camadas estruturais que levaram à descrença profunda do establishment no mundo todo. O Brexit na Inglaterra e Trump nos EUA captam essa sede por mudança em meio a um cenário crítico de crise econômica que o mundo atravessa no século XXI.

No Brasil, o juiz Sergio Moro encarna e canaliza essa raiva com discurso do combate à corrupção, mesmo se seus atos de investigação forem controversos. O PMDB e o PSDB articularam o golpe.

Tiveram o oportunismo político e sabem se aproveitar do governo Temer para aprovar tudo o que não passaria com facilidade em um momento de normalidade, como a PEC 241/55. A bem da verdade, esses homens do poder de hoje apenas pegaram carona na insatisfação profunda contra o establishment. E estes, mais cedo ou mais tarde, podem também cair.

Não houve reestruturação da estabilidade com o impeachment. Basta ver as manifestações mais recentes. Existe uma raiva difusa contra “tudo o que está aí”. Não apenas o ódio ao PT levou à situação atual. A restauração conservadora não é privilégio brasileiro. O classismo, o racismo e o sexismo pesaram, claro, nessa empreitada.

As bandeiras populares, humanistas e democráticas são as primeiras a cair em momentos de crise. O ódio é dirigido aos mais fracos, mas é fruto de um descontentamento mais profundo, e de mais difícil compreensão, contra toda e qualquer forma de establishment.

A convulsão não é nova na história. Na antropologia, ela é compreendida como liminaridade, as fases de transição, confusão, inversão e sofrimento. É um limbo demorado, verdade, que começou em 2013 e tende a se encerrar em 2018.

Globalmente, à direita e à esquerda, voltamos, ou nunca saímos, ao que Arendt descrevia como “o desprezo da autoridade estabelecida (...) as leis perderam o seu poder (...) não se pode imaginar evidência mais exposta, nem sinais mais explícitos de instabilidade e vulnerabilidade dos governos e sistemas legais”. 

Ao retomar o marxismo, Arendt entendia que esses momentos se configuram “situações revolucionárias”, marcadas pela desintegração da legitimidade dos governos. Há desobediência civil por todos os lados, até entre quem clama pela intervenção militar.

Canalizando a insatisfação
Quem tem sido capaz de organizar e canalizar a insatisfação no Brasil?

A esquerda mais tradicional tornou-se não apenas o establishment, mas se desgastou em escândalos consecutivos de corrupção.

Após conquistas históricas, como a redução da pobreza e da desigualdade social e o acesso ao ensino superior, uma parte do establishment político e intelectual à esquerda passou a negar a crise econômica que fortemente afetou a classe trabalhadora e o “precariado”.

Enquanto batiam na tecla de que o País nunca esteve tão bem e de que os descontentes eram “fascistas” e “analfabetos políticos”, novos movimentos surgiam para capturar essa angústia. O golpe, oportunisticamente, aproveitou-se desse momento.

Perdemos essa batalha ideológica. Enquanto isso, muitos intelectuais de esquerda continuam elaborando seus all-white-male-panel (painéis somente com homens brancos) – do alto da universidade – para digerir o que aconteceu e prospectar “a reorganização da esquerda”. Talvez tenhamos perdido o senso de base e realidade.

Enquanto isso, parte gigantesca da população mexe-se à deriva, inquietada. Grupos mais organizados aproveitam-se desse momento de raiva pulverizada e canalizam a insatisfação.

A retrospectiva de 2016 do Movimento do Brasil Livre (MBL) é exemplar desses tempos de inversão. Eles se apropriam da linguagem do campo progressista.

Descrevem a si próprios como mobilizadores das massas, alegam que as mídias e o poder estabelecido são manipuladores, os magistrados, infames, e os políticos, corruptos.

Dizem que as manifestações organizadas pelo movimento foram as maiores da história do Ocidente, pois catalisou um povo em fúria que não aceita o discurso criminoso e os jatinhos de políticos.

Para eles, as ruas reagiram, o movimento continuou resistindo e, finalmente, o establishment foi derrotado. As elites midiáticas tiveram de se curvar. Por fim, o movimento diz: “Se você quiser o sonho dourado, nós não podemos te dar. Te chamarão de louco e ultrapassado, mas esse é o preço da verdade que eu te trago”.

A eleição da “pós-verdade” (“circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência sobre a opinião pública do que a emoção e as crenças pessoais”) como a palavra do ano pelo Dicionário Oxford não podia ser mais adequada para definir um ano em que os movimentos de direita se definem anti-establishment.

No Brasil, diante de uma esquerda enfraquecida, mentiras que impulsionam a ação: reinventam a ameaça comunista e a necessidade de sua contenção. Essa narrativa, em última instância, legitima a ascensão do autoritarismo e do regime de exceção.

Hannah Arendt dizia que a lacuna entre o passado e o futuro é um tempo sem testamento. Assim, só resta reinventar o futuro.

Novos movimentos no campo da esquerda surgem no Brasil na tentativa de reconstruir a sociedade no plano concreto das interações. É para as ocupações estudantis que precisamos olhar, por exemplo. São nelas que os valores de verdade, equidade, solidariedade e horizontalidade – sempre imperfeitos e inacabados – são negociados na prática.

É na escuta e no cuidado com o colega, com o patrimônio público e com as famílias que se rompem diversas lógicas hegemônicas e autoritárias. O movimento secundarista é um entre tantos coletivos que entenderam que, antes de reinventar a esquerda, é preciso que a gente se reinvente enquanto seres coletivos.

Ainda não sabemos como serão os arranjos políticos entre essas novas lutas e a esquerda institucionalizada. Esses caminhos ainda estão em fase de criação e negociação. O campo progressista precisa urgentemente reaprender a escutar os indivíduos. Que esses novos movimentos inspirem o resgate do futuro por meio da reconstrução da justiça e da verdade, ambas esfaceladas nestes tempos sombrios.

*Cientista social e antropóloga, professora visitante da USP e colunista de CartaCapital
Fonte: Carta Capital

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