domingo, 6 de setembro de 2015

Migrantes. Uma travessia interrompida

Brilhante reflexão do jornalista Henrique Araújo, publicado em O Povo neste domingo (6), abondando a tragédia humanitário dos refugiados e o sofrimento de milhares de pessoas na maioria crianças.


Adi Hudea, 4 anos: menina síria vivia com a família em campo de refugiados na Turquia


É vertiginosa a rapidez com que passamos de uma tragédia a outra sem que nada mude verdadeiramente. Uma imagem de dor, e toda a catarse que se segue, torna perecível a agonia de apenas seis meses atrás.

Alguém ainda se lembra? Vista por mais de 11 milhões de pessoas, a foto mostra Adi Hudea, 4 anos, uma menininha síria cujo gesto se tornou símbolo do terror nos campos de refugiados. Nela, a criança se rende ao confundir uma máquina fotográfica com uma arma. 

“Normalmente, crianças correm, escondem os rostos ou sorriem quando veem uma câmera", disse o fotógrafo Osman Sagirli, autor do retrato, feito em dezembro do ano passado, mas conhecido apenas em março deste ano. Lábios apertados, como a segurar o choro, os olhos arregalados e as mãos erguidas. Essa foi a reação da menina. 


Aylan Kurdi, 4 anos: família tentava chegar à Europa em uma travessia de barco
Normalmente, crianças brincam na praia, cavoucando montinhos de areia com baldes, colheres e outras ferramentas de artesania infantil. Fazem castelos, apanham conchas e se apavoram se uma onda mais forte quebra a poucos metros. Costumava ser assim. 

Aylan Kurdi, 3, também sírio e refugiado com a família na Turquia, começou a morrer muito antes de haver nascido. Morreu alheio à vida – não à da criança que aparece sorridente nas fotos ao lado do pai vestindo camiseta com desenhos de foguete, estrelas e um astronauta.

Corpo devolvido, Aylan morreu sem participar da miséria do mundo adulto, esse mesmo que barganha e rejeita a permissão para que populações expulsas de suas terras sejam recebidas. Enquanto crianças confundem lentes fotográficas com armas e perdem a vida numa paisagem idílica onde famílias de classe média veraneiam, os homens demoram-se em negociações e os burocratas constroem muros para impedir o avanço dos indesejáveis. 

Aylan não conheceu essa dor catalogada como “fluxo migratório” e nem a vida encerrada em estatísticas. Morreu feito um Ulisses: no mar, em plena travessia tormentosa, como herói, a caminho de uma ilha, em busca de um lar.

As charges tentam restituir a infância do menino. Esforço digno, mas impotente. Dotar a imagem de asas ou cobri-la com um manto divino não a torna menos dolorida, tampouco explicita as razões que antecedem a tragédia. 

É preciso refazer os passos do menino, mas sem artifícios ou eufemismos gráficos. Homenageá-lo é reconhecer-lhe a existência real. Há um drama anterior: é preciso narrá-lo. O garotinho afogou-se depois de a embarcação onde viajava naufragar com pouco mais de uma dezena de pessoas. Entre elas, o irmão e a mãe. 

Pinturas não suavizam o corpo de bruços com o rostinho enterrado na areia, numa posição comum entre bebês. É necessário ir além da indigestão passageira causada pela imagem aterradora e da natureza cruelmente provisória desse tipo de indignação coletiva. 

Passageiro da mesma agonia, o pai de Aylan vive. Não imagino a que reserva particular de forças tenha recorrido para encarar a morte dos queridos nem como pretende superar a fotografia do filho trazido novamente à areia, como um despojo de guerra. 
Deitado, sozinho, à espera de algo que não virá.

Minha filha fez um ano duas semanas atrás. Houve festa, bolo e música. Neste domingo, planejo levá-la à praia. Quero vê-la chafurdar com os pés e, quem sabe, entrar um pouco na água, ali, no rasinho, onde as ondas quebram mansas e a vida deveria ser o que é: uma brincadeira.

Por Henrique Araújo - O Povo (
domingo, 6 de setembro de 2015)

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