segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Mestra Anísia | A Mestra Sabedoria

1 - Gravura - Busto Mestra  Anísia Rocha

Infante graciosa dos mares de Camocim, jovem alegre e benfazeja interna da Princesa do Norte, por madura escolha e pura convicção; intitulava-se de nacionalidade afetiva francesa, sonhadora e intrépida vocacionada religiosa do Colégio Sant´Ana, tornou-se aristocrática Filha de Rosa Gattorno, adotou por mística espiritual o emblemático nome Anísia, verdadeiro rochedo divino. De cútis nórdica, talhe altaneiro, vistoso trajar, flanava pelos caminhos com as torneadas e belas pernas, vastas ancas e esbelto busto. Alva, sempre assepticamente alva, desafiava até o próprio branco celestial. Jamais foi por nós vista em trajes ou vestes seculares.

Notadamente discreta, recatada, estilo monacal, todavia amplamente eloqüente, erudita, portava elegância vocabular implícita e garbosa, possuía belos olhos de lince, ouvidos sensíveis e magnos, um nariz aquilino repouso das lentes que lhe imprimiam e concluíam o aspecto intelectual, de brejeiro e terno sorriso, gestos finos, contidos, ousaria dizer destros próprios. Uma mente fabulosa, fascinante, encantadora… Avessa às frivolidades, amante das nobres e clássicas letras, consumia o tragar dos dias entre os intermitentes, perenes e constantes estudos, apreciadora helenística das belezas vitais, era patronesse das artes, mecenas do Mérito Cultural, artífice de longa e vasta, prosa e verso, notável redatora e corretora textual, apreciadora da numismática, seu habitat natural era a Secretaria, mas reinava e transcalava odorífico perfume por entre as Salas, Capela, Clausura, Mecanografia, e demais dependências do seu Colégio Sant´Ana. Pois mais do que posse, por ele nutria casto sentido de pertença. Tinha por nicho, ou melhor, dizendo , pórtico preferencial a Sacada Interna da Quadra inserida no Pátio Principal. De lá fitava-nos até a alma, observava-nos os hábitos, os uniformes, as devidas e as inconvenientes posturas, os belos ou sujos vocabulários, vícios da garotice e notadamente as imaturidades pueris. Conhecia nossa genealogia completa, da ascendência a posterior descendência. Sabia-nos até os pensamentos… Nada poderia passar-lhe despercebido, pois sempre a nós estava atenta, diligente e cuidadosa. Acredito piamente que neste momento, há certamente alguns de nós, que até hoje, ao ouvir-lhe o nome, ainda põem-se em precipitada fuga, pois tem receio de serem pegos em flagrante delito, em conseqüente estripulia, travessura ou desordem… Nossa Mestra Anísia, tinha a máxima capacidade de desencadear-nos, especialmente nos mais levados, diria endiabrados; as precoces palpitações, involuntárias e céleres contrações cardíacas, calafrios e determinados suores…

Sua presença provocava natural alinhamento e perfilhamento de cadeiras e colunas, aggiornamento nos uniformes, silêncio pleno nas salas de aula. Ninguém possuía manejo de sala como ela. Pois Mestra Anísia disciplinava-nos tão somente com os olhos, ou muito, em leves e contidos gestos, jamais precisava alterar o timbre vocálico ou produzir cacofonia vocal. Tinha a mais elevada autoridade que se possa possuir: a afetiva.

Mais do que médias, históricos, transferências, boletins, Ela guardava-nos os nomes, as maneiras, as características, o aprendizado, os talentos, as potencialidades, as vocações naturais… Bom, conhecia com propriedade os caprichos, as manhas, as mentiras, as dissimulações, as ausências, as algazarras… Enfim, Ela conhecia-nos muito mais que nossos próprios pais. Sempre foi nosso referencial, nosso esteio, nosso paradigma a cumprir. O espelho que melhor nos revelava à pura e verdadeira imagem. Ela em primordiais momentos sentenciava até os nossos destinos escolares. Mestra Anísia era a guardiã, a prior de nossa História Estudantil.

Em nosso Consulado Estudantil Interno foi Embaixadora singular do nosso Corpo Diplomático Local, prestando-nos inumeráveis e relevantes serviços com seus idiossincrásicos dotes de Poliglota.

Virtuose do piano e das partituras eruditas musicais jamais permitiu poluição sonora interna em nossas dependências escolares, ao contrário, podíamos até escutar o som Celeste do Paraíso quando dela nos acercávamos. Sua voz, sua maviosa voz entrava-nos tímpanos adentro sempre trazendo boas novas… Quando entoava singularmente a sua Marselhesa, ou seus Boleros de Ravel, o seu alvo de fascinação do cancioneiro popular, as suas canções inebriantes e nostálgicas de Nelson Gonçalves…

Sempre a recitar-nos algo de belo, versos, odes, poemas, sextetos, redondilhas… Consumindo-se no estudo do vernáculo, no seu disciplinar alemão, excelso francês, largo italiano, copioso latim, perfeito e fluente espanhol, britânico inglês da BBC, e as impagáveis e clássicas aulas de grego. Viajava-se o cosmos todo em tão somente rápidos quarenta e cinco minutos de classes. Era uma verdadeira epopéia lingüística.

Espantava-nos a natural rapidez com que tomava posse de novos verbetes, vocábulos, silogismos, neologismos, inflexões verbais, conjugações, regências e ortografias inéditas. Os acórdãos orográficos pareciam de dentro brotar-lhe. Tinha-os ao cair dos lábios… A Literatura Mundial por Ela era consumida e apreendida de forma avassaladora… Descomunal… Ânimo leve e uma mente ampliadíssima…

Era portadora do trato epicrítico e protopático mais eficientes que já pude por reparo… Pois o fazia com os arremedos de lápis que gostava de portar… Não sabíamos sequer como o fazia, mas fazia maestrinamente, sempre ávida por uma borracha, repleta de calhamaços de papel, todos em extraordinária ordem, organização e estrutura. Dotada de uma metodologia, pedagogia e didáticas únicas. Jamais atrasava um planejamento ou plano de conteúdos e aulas. O Instrumento técnico mais eficiente que pude observar em vida, quando tratamos de burocracia, papeladas e documentos. Em Roma, faria e poria ordem até em nosso Amado Papa Francisco!

De nós pobres e ínfimos plebeus furtava-nos o coração, as almas, as noites, as tardes, as manhas, de alguns até as férias. Mesmo assim era por nós a Predileta, a Preferida, a mais Cara, a entre todas Especial…

Ao nomear-nos de ‘’Mariposas’’, estimulava-nos a transformar-nos nas autenticas Borboletas que tanto almejava que fôssemos; no plantel da Vida. Nada como o seu sincero sorriso, seus ternos afagos, seus calorosos abraços. A nobreza de sua alma e de sua existência conosco trilhada.

Do inesquecível relógio de algibeiras às claras lentes, nada em sua indelével, insubstituível presença, por nós será esquecida. É impossível pedir-nos para dentro de nós um dia sepultá-la. Mestra Anísia Rocha marcou-nos, imprimiu em nossas vidas algo muito maior do que letras, idiomas, comportamentos, eflúvios sapienciais, Ela deixo-nos enredados na sua causa soberana da busca pelo conhecimento, a trabalharmos com modos operantes de perfeição, a crer de forma indissolúvel e consistente. Um testemunho fiel e irrepreensível, uma vocação total.

A Maior entre todas as Damas da Princesa do Norte, a nossa Emérita Cultural, nossa eterna Madre Superiora, Nossa Prima Donna, a Nossa Mestra Sabedoria, parte…

Deixa mais de sete décadas de Mariposas órfãs, hoje elas flanam nostálgicas nos céus sobralenses, fortalezenses, cearenses, nacionais e internacionais, pois como Ela gostava de dizer: ‘’Minhas Mariposas Azuis são céleres, estão por toda parte, a desbravar o mundo!’’.

Da pequena criança em exame de admissão, perpassando a aurora de minha infância, com as alegrias e desventuras adolescentes, consolidando as expectativas empreendedoras juvenis, sempre a meu lado Ela esteve; construindo e partilhando história, com muita alegria, afeto e mútua admiração. Atrevo-me até a especular o que dirigia ao ler esta singela produção textual: ‘’ Claudinha, minha Mariposa Azul, guardastes tudo isto de Tua Mestra, deixaste-me perplexa… Terei de dar-te o primeiro piparote! Revelaste por demais nossa vida… Na verdade, não espera menos de Ti, Tu sabes alegrar-me o espírito!’’

Ao deixar de dar suas rápidas cordas no Tempo, rompeu Nossa Mestra Sabedoria o casulo da vil matéria humana, foi tecer na Eternidade, no Studium Divino, a Primavera Celestial.

De sua eterna e saudosa Mariposa Azul:

Claudimar Rodrigues Schneider.

Fonte: Jornal Correio da Semana

Nenhum comentário:

Postar um comentário